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“Mesmo o mais
corajoso entre nós só raramente tem coragem para aquilo que ele realmente
conhece”.
É o meu caso. Muitos pensamentos meus, eu guardei
em segredo. Por medo. Um escritor, acrescentou um
detalhe acerca da hora em que a coragem chega:
“Só tardiamente ganhamos a
coragem de assumir aquilo que sabemos”.
Tardiamente.
Na velhice. Como estou
velho, ganhei coragem.
Vou dizer aquilo
sobre o que me calei: “O povo unido
jamais será vencido”, é disso que eu tenho medo.
Em tempos
passados, invocava-se o nome de Deus como fundamento da ordem
política. Mas Deus foi exilado e o “povo” tomou o seu lugar: a democracia
é o governo do povo. Não sei se foi bom negócio; o fato é que a vontade do povo,
além de não ser confiável, é de uma imensa mediocridade. Basta ver os programas
de TV que o povo prefere.
A Teologia da
Libertação sacralizou o povo como instrumento de libertação histórica. Nada
mais distante dos textos bíblicos. Na Bíblia, o povo e Deus andam sempre em
direções opostas. Bastou que Moisés, líder, se distraísse na montanha para que
o povo, na planície, se entregasse à adoração de um bezerro de ouro. Voltando
das alturas, Moisés ficou tão furioso que quebrou as tábuas com os Dez
Mandamentos.
E a história do
profeta Oséias, homem apaixonado! Seu coração se derretia ao contemplar o rosto
da mulher que amava! Mas ela tinha outras ideias. Amava a prostituição. Pulava
de amante e amante enquanto o amor de Oséias pulava de perdão a perdão. Até que
ela o abandonou. Passado muito tempo, Oséias perambulava solitário pelo mercado
de escravos. E o que foi que viu? Viu a sua amada sendo vendida como escrava.
Oséias não teve dúvidas. Comprou-a e disse: “Agora você será minha para
sempre.” Pois o profeta transformou a sua desdita amorosa numa parábola do amor
de Deus.
Deus era o amante
apaixonado. O povo era a prostituta. Ele amava a prostituta, mas sabia que ela
não era confiável. O povo preferia os falsos profetas aos verdadeiros, porque
os falsos profetas lhe contavam mentiras. As mentiras são doces; a verdade é
amarga. Os políticos romanos sabiam que o povo se enrola com pão e circo. No
tempo dos romanos, o circo eram os cristãos sendo devorados pelos leões. E como
o povo gostava de ver o sangue e ouvir os gritos! As coisas mudaram. Os
cristãos, de comida para os leões, se transformaram em donos do circo.
O circo cristão era
diferente: judeus, bruxas e hereges sendo queimados em praças públicas. As
praças ficavam apinhadas com o povo em festa, se alegrando com o cheiro de churrasco
e os gritos. No livro “O Homem
Moral e a Sociedade Imoral” observa-se que os indivíduos, isolados, têm
consciência. São seres morais. Sentem-se “responsáveis” por aquilo que fazem.
Mas quando passam a pertencer a um grupo, a razão é silenciada pelas emoções
coletivas. Indivíduos que, isoladamente, são incapazes de fazer mal a uma
borboleta, se incorporados a um grupo tornam-se capazes dos atos mais
cruéis. Participam de linchamentos, são capazes de pôr fogo num índio
adormecido e de jogar uma
bomba no meio da torcida do time rival.
Indivíduos são seres morais. Mas o povo não é moral. O povo é uma
prostituta que se vende a preço baixo. Seria maravilhoso se o povo agisse de
forma racional, segundo a verdade e segundo os interesses da coletividade. É
sobre esse pressuposto que se constrói a democracia. Mas uma das características
do povo é a facilidade com que ele é enganado. O povo é movido pelo poder das
imagens e não pelo poder da razão. Quem decide as eleições e a democracia são
os produtores de imagens. Os votos, nas eleições, dizem quem é o artista que
produz as imagens mais sedutoras.
O povo não pensa. Somente os indivíduos pensam. Mas o
povo detesta os indivíduos que se recusam a
ser assimilados à coletividade. Uma coisa é a massa de manobra sobre a qual os
espertos trabalham. Nem Freud, nem Nietzsche e nem Jesus Cristo confiavam no
povo. Jesus foi crucificado pelo voto popular, que elegeu Barrabás. Durante a
revolução cultural, na China de Mao-Tse-Tung, o povo queimava violinos em nome
da verdade proletária. Não sei que outras coisas o povo é capaz de
queimar. O nazismo era um movimento popular. O povo alemão amava o Führer.
O povo, unido, jamais será vencido!
Tenho vários gostos
que não são populares. Alguns já me acusaram de gostos aristocráticos.
Mas, que posso fazer? Gosto de Bach, de Brahms, de Fernando Pessoa, de
Nietzsche, de Saramago, de silêncio; não gosto de funk, não gosto de rap,
não gosto de música sertaneja, não gosto de apoliticos. Tenho medo de que, num
eventual triunfo do gosto do povo, eu venha a ser obrigado a queimar os
meus gostos e a engolir sapos e a brincar de “boca-de-forno”, à
semelhança do que aconteceu na China.
De vez em quando,
raramente, o povo fica bonito. Mas, para que esse acontecimento raro
aconteça, é preciso que um poeta entoe uma canção e o povo escute: “Caminhando
e cantando e seguindo a canção.”,
Isso é tarefa para
os artistas e educadores.
O povo que amo não
é uma realidade, é uma esperança.
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